O mundo vive sua primeira pandemia na era da pós-verdade com resultado potencialmente catastrófico. Duvidar das orientações de autoridades sanitárias para evitar a propagação de Covid-19 é algo próprio desses tempos em que crenças tendem a se sobrepor a evidências.

De um lado, observa-se a racionalidade científica representada principalmente pela Organização Mundial de Saúde (OMS). Em janeiro, a instituição classificou o surto do novo coronavírus como Emergência de Saúde Pública de Importância Internacional, o mais alto nível de alerta do Regulamento Sanitário Internacional. Em seguida, com o respaldo das autoridades sanitárias globais e da comunidade científica internacional, caracterizou a Covid-19 como pandemia. Isso se chama conhecimento baseado em evidências.

Enquanto isso, disseminou-se mundo afora uma versão que extrapola os limites das teorias da conspiração. O coronavírus seria um inofensivo resfriado resultado de uma ardilosa estratégia de Satanás em conluio com a mídia para gerar pânico e histeria, cuja cura estaria disponível aos que têm fé. Tal construção nasce de um egocentrismo místico, é alimentado por uma espécie de ignorância orgulhosa de si e dissemina-se na velocidade de um vírus via smartphones. Isso se chama opinião baseada em crenças.

O conhecimento é consequência de um conjunto de procedimentos aplicados à investigação da realidade. Ele é legitimado por instituições científicas e se torna pré-requisito ao comportamento baseado no “penso, logo existo”. A opinião, por sua vez, é a percepção construída sobre esse conhecimento, a partir de crenças e expectativas sobre como a realidade deveria ser. Ela se manifesta em verdades absolutas do “acredito, logo é verdade”.

Na pós-verdade, busca-se igualar opinião e conhecimento e, com isso, sacar fatos ou falsidades a depender da estratégia do discurso. Esse processo é reforçado pela rapidez e sobrecarga de informação das redes sociais digitais, capaz de fragilizar o pensamento crítico e a capacidade de reflexão.

A novidade no caso da Covid-19 não é o desprezo pela ciência, mas o impacto que esse discurso obscurantista pode causar em tempos de indivíduos interconectados em escala. Numa pandemia nesse ambiente de pós-verdade, o número de vítimas vai depender, em grande medida, do resultado da disputa entre conhecimento e opinião.

Juliano Domingues é professor da Unicap e Bruno Gueiros é doutorando em Comunicação (UBI-Portugal).

Texto publicado no Jornal do Commercio no dia 29 de março.