Juliano Domingues

Quem se declara de direita tende a minimizar os efeitos da pandemia do novo coronavírus e a isentar o presidente Jair Bolsonaro de culpa pelo número de mortos, ao contrário de quem se diz de esquerda. Não por acaso, algo similar ocorre nos EUA na comparação entre democratas e republicanos.

Pesquisa Ibope divulgada no início deste mês é um exemplo recente a indicar a relação entre convicção política e percepção sobre a realidade. Para 33% dos eleitores, Bolsonaro é o principal culpado pelos impactos da pandemia no Brasil. Entre autodeclarados de direita, porém, esse percentual é de apenas 8%, enquanto entre os de esquerda ele é de 78%. O posicionamento no espectro ideológico também se reflete na percepção sobre a gravidade da pandemia: à direita, 36% avaliam que o impacto foi muito pior do que o esperado, quase metade do percentual à esquerda, de 64%.

As percepções e decisões políticas, assim como quaisquer ações individuais ou coletivas, sejam banais ou não, decorrem de uma adesão maior ou menor a proposições normativas. Em outras palavras, as nossas decisões e, consequentemente, o nosso comportamento dependem de um imbricado sistema de crenças, valores e normas chamado genericamente de “visão de mundo”. Uma das suas principais funções é racionalizar sentimentos e juízos de valor, em nossas eternas buscas por fins e meios diante do que chamamos de realidade.

Visões de mundo se revelam nas pesquisas da Pew Research sobre espectro ideológico e percepção da pandemia nos EUA. Eleitores republicanos tendem a relativizar o impacto do novo coronavírus e, consequentemente, aderem menos ao distanciamento social em comparação a eleitores democratas. Pesquisas do professor da Universidade de Princeton Patrick Sharkey apontam, ainda, que indivíduos pouco fiéis ao distanciamento social costumam também negar que haja mudanças climáticas. Não por coincidência, o aquecimento global é um tema mais sensível entre democratas do que entre republicanos.

Dados dessa natureza sugerem, portanto, que não há atalho para interpretar percepções derivadas de um complexo sistema de crenças capaz de relativizar a crítica racional em função de sentimentos. Os caminhos para isso passam pelo incontornável desvendar da relação entre convicções políticas e visão de mundo, a despeito de toda a polissemia contida na palavra ideologia.

Juliano Domingues é cientista social e professor da Universidade Católica de Pernambuco (Unicap).

Texto publicado na seção de Opinião do Jornal do Commercio no dia 13 de setembro de 2020.